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Carolina Uzeda*

A notícia, recentemente divulgada no site do STJ, assustou, em especial, aqueles que se dedicam ao estudo do direito processual. A Terceira Turma, por maioria, negou a possibilidade de o recorrente, plano de saúde com atuação em todo território nacional, desistir do Recurso Especial n. 1.721.705/SP (leia o voto da relatora).

Já havia precedente persuasivo [1], sob a égide do CPC/73, inclusive de relatoria da própria Min. Nancy Andrighi, no qual foi vedada a desistência de recurso especial. A decisão recente não foi uma grande novidade.

Então, por qual motivo todos pareceram surpresos? Porque a decisão, primeira neste sentido prolatada após o CPC/15, trouxe duas questões muito interessantes.

A aplicação do art. 998, parágrafo único, do CPC

A primeira delas, é relacionada à aplicação do art. 998, parágrafo único, que autoriza a “análise de questão cuja repercussão geral já tenha sido reconhecida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários (se é que existem) e especiais repetitivos”, ainda que a parte desista do recurso. Caso o recorrente tenha seu recurso afetado, ainda assim, poderá dele desistir, a qualquer tempo e independentemente da anuência do recorrido ou dos litisconsortes. Isto não impedirá que o STJ ou o STF pacifiquem a controvérsia, mediante o julgamento exclusivamente a tese e a formação de precedente vinculante.

Apesar da ausência de previsão legal para a cisão do julgamento em recurso especial inapto a viabilizar a criação de norma geral, ou seja, de recurso não sujeito ao regime dos repetitivos, a Terceira Turma entendeu pela possibilidade de julgar-se apenas a tese.

Esclareceu a Relatora, a Min. Nancy Andrighi, que é importante considerar as funções desempenhadas pelo STJ e que, dentre elas, está a uniformização da interpretação da legislação federal em âmbito nacional, o que o tribunal pode [e deve] fazer, independentemente da existência de um sistema de precedentes vinculantes.

Em suas palavras, “a exegese do art. 998 do CPC/15 deve ser feita à luz da Constituição e conforme a missão institucional do STJ, levando-se em consideração o seu papel, que transcende o de ser simplesmente a última palavra em âmbito infraconstitucional, sobressaindo o dever de fixar teses de direito que servirão de referência para as instancias ordinárias de todo o país.” [2]. Afinal, não é possível “interpretar o comando legal de forma isolada, atendo-se apenas à sua literalidade e ignorando o contexto em que está inserido”.

Não se pode negar que as funções relacionadas pela Ministra Relatora devem ser desempenhadas pelo STJ em todos os seus julgamentos, esteja o recurso inserido no regime de recursos repetitivos, ou não. Tal situação autoriza a interpretação conforme a Constituição sugerida pela Questão de Ordem e a cisão do julgamento. Isto é, permite que, apesar da desistência do recurso, o STJ analise a tese – ainda que não seja para formar um precedente vinculante, na forma dos recursos especiais repetitivos.

O que acontecerá após a cisão, como o julgamento do recurso se desenvolverá e quem assumirá o papel das partes, exercendo o necessário contraditório, realizando sustentação oral ou recorrendo do acórdão prolatado é outro problema, que não parece ser obstáculo intransponível à cisão em si. Da mesma forma que não estão em pauta, por enquanto, os efeitos da decisão que fixa a tese.

No caso concreto, parece-nos que não haverá espaço para tais discussões, uma vez que as partes apresentaram a comprovação da autocomposição nos autos e, considerando que não há o que se falar em formação de precedente vinculante, inexiste interesse recursal para impugnarem eventuais vícios presentes no julgamento e no acórdão [3].

Houve ou não cisão para a fixação da tese?

Dito isto, há outra ponderação a ser feita. Apesar de fundamentar neste sentido, o STJ não cindiu o julgamento para analisar apenas a tese. No caso concreto, em um primeiro momento, a Turma admitiu a cisão. Acontece que deixou de aplicá-la, uma vez que, em uma fundamentação indicativa de que compreendia que a desistência do recurso foi, na verdade, praticada em abuso do direito, impediu expressamente que o recorrente exercesse tal poder.

Admitiu-se, inutilmente, ser necessária uma interpretação conforme a Constituição, no sentido da possibilidade de julgamento exclusivamente da tese em todo e qualquer recurso especial. Isto porque, o que o STJ fez foi impedir a parte de desistir do recurso, considerando que:

(a) autorizar a desistência poderia viabilizar a manipulação da jurisprudência da Corte;

(b) a referida manipulação somente será possível ao litigante habitual (caso do recorrente);

(c) o litigante habitual, admitindo-se a desistência, poderia “escolher quais Ministros levarão o tema ao colegiado na condição de Relatores e, pior, será possível subtrair de uma determinada Turma a apreciação da controvérsia”; e

(d) a chance de manipulação está diretamente ligada à gravidade do dano, sua abrangência e seu reconhecimento pelas instancias ordinárias.

Nenhuma destas condutas foi expressamente atribuída ao recorrente, apesar de ter-se afirmado que este possui 520 processos ativos em trâmite no STJ, “circunstancia que lhe permite, potencialmente, firmar acordos em todos os processos que julgar convenientes”.

Os fundamentos da Terceira Turma para insistir no julgamento do recurso, independentemente da cisão e mesmo diante da desistência, estão relacionados à prática de abuso do direito, porém nenhum ato abusivo foi diretamente atribuído ao recorrente. Ainda que se possa cogitar a perda do poder de desistir do recurso interposto, em razão do abuso, tal fundamento – embora aventado – não foi atrelado, de forma clara e expressa, ao ato de desistência efetivamente praticado nos autos.

Talvez por isto, ao final da Questão de Ordem, a Min. Nancy Andrighi, embora tenha indeferido o pedido de desistência, manifestou-se “no sentido de que prossiga com o julgamento do recurso especial, de modo que, vindo o seu mérito a ser efetivamente apreciado pelo colegiado, seja fixada tese de direito tendente à consolidação da jurisprudência do STJ”.

A bem da verdade, a Questão de Ordem não pareceu querer punir o recorrente por abuso do direito. Mesmo porque, não utilizou expressamente de tal fundamento quando vedou (indeferiu, em suas palavras [4]) a desistência do recurso. O que pareceu motivar o prosseguimento do julgamento foi a fixação da tese, o que, com a devida vênia, poderia ocorrer pela aplicação do parágrafo único do art. 998, ainda que admitida a desistência. Não era possível nem justificável retirar o poder da parte de desistir do recurso interposto, sobretudo pela ausência de qualquer fundamento no sentido de ter efetivamente abusado do seu direito.

Ainda assim, parece-nos que o STJ, ao interpretar conforme a Constituição o art. 998, parágrafo único, inaugurou um novo sistema, atraindo para todos os recursos especiais a sistemática de julgamento dos temas objetivados, mesmo que seus efeitos não sejam os mesmos. Certamente, em breve, a situação será repetida e estaremos diante de outras perguntas, ainda sem respostas: como se efetivará o contraditório em um recurso sem partes e quais os efeitos da decisão que fixa a tese?

[1] Sobre a diferença entre precedentes persuasivos e vinculantes, vide: CRAMER, Ronaldo. Precedentes judiciais: teoria e dinâmica. – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017.

[2] “Registro, ainda, que é permitido aos magistrados, no exercício de atividade hermenêutica, revelar o sentido das normas legais, limitando a sua aplicação a determinadas hipóteses, sem que estejam declarando a sua inconstitucionalidade. Se o Juízo reclamado não declarou a inconstitucionalidade de norma nem afastou sua aplicabilidade com apoio em fundamentos extraídos da CF/1988, não é pertinente a alegação de violação à Súmula Vinculante 10 e ao art. 97 da CF/1988.” [Rcl 12.122 AgR, voto do rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 19-6-2013, DJE 211 de 24-10-2013.]

[3] Entendemos que, nas hipóteses de recurso afetado para julgamento sob o regime dos recursos especiais repetitivos, a parte desistente terá interesse em prosseguir participando  do feito, inclusive mediante a interposição de recursos, desde que sua desistência seja meramente parcial. Como defendemos em outra oportunidade, “o recorrente poderá desistir apenas do recurso interposto no tocante à norma individual e persistir, enquanto recorrente, impugnando a norma geral, desde que demonstre interesse recursal para tanto. Nesses casos, não deixará de ser considerado recorrente e será desnecessária a sucessão pelo Ministério Público.” (Interesse recursal. Salvador : Editora Juspodivm, 2018, p. 235. Em sentido contrário: TALAMINI, Eduardo; WLADECK, Felipe Scripes. Comentário ao artigo 998. In: Comentários ao código de processo civil – volume 4 (arts. 926 a 1.072). Cassio Scarpinella Bueno (coordenador). São Paulo: Saraiva, 2017, p. 345.

[4] Não nos parece correto afirmar que o Tribunal tem a prerrogativa de deferir ou indeferir uma desistência de recurso.

* Carolina Uzeda é Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Carioca de Processo Civil e da Comissão Especial de Análise da Regulamentação do Novo Código de Processo Civil do Conselho Federal da OAB. Advogada no Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.