Carolina Uzeda*
O STJ julgou, no dia 04.12.2018, um dos temas mais relevantes do processo civil, após dois anos de vigência do CPC/15: a natureza jurídica e o alcance do rol previsto no art. 1.015[1]. O “rol do agravo” foi objeto de inúmeras controvérsias na doutrina, destacando-se, principalmente, o entendimento defendido por Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha, no sentido de que, embora taxativo, o art. 1.015 comportaria interpretação extensiva. A tese seria aplicável, especialmente, para as decisões que versassem sobre competência do juízo e que negassem vigência a negócio jurídico processual[2].
A Quarta Turma, em novembro do ano passado, chegou a acolher a tese da interpretação extensiva, tendo decidido pela recorribilidade, por agravo de instrumento, de decisões interlocutórias sobre competência. Pelo que se percebe do voto do Ministro Luis Felipe Salomão, o cabimento do recurso se extrairia a partir de uma “interpretação analógica ou extensiva da norma”. Nas palavras do Relator, ao admitir a interposição do recurso em face de tais decisões, evitam-se as consequências negativas de um processo que tramite perante juízo incompetente (REsp n. 1.679.909/RS, julgado em 14.11.2017).
A decisão da Corte Especial, entretanto, surpreendeu a todos. Seguindo, por maioria, o voto vencedor da Ministra Relatora Nancy Andrighi, consignou que a melhor interpretação da regra prevista no art. 1.015 deve ser o que se chamou de taxatividade mitigada. Apesar de o rol de hipóteses de cabimento do agravo de instrumento ser taxativo e não comportar interpretação extensiva ou analógica, as situações que não possam aguardar rediscussão em futura apelação poderão ser impugnadas por aquele recurso.
O critério definidor da expressão “situações que não possam aguardar rediscussão em futura apelação” seria a urgência decorrente da impossibilidade de se aguardar o momento oportuno para apreciação do recurso. Caso a parte espere a apelação para recorrer da decisão interlocutória, haverá um grave risco de inutilidade da tutela jurisdicional. Como consta no voto:
“É possível extrair desse critério que o recurso será cabível em situações de urgência, devendo ser este o elemento que deverá nortear quaisquer interpretações relacionadas ao cabimento do recurso de agravo de instrumento fora das hipóteses arroladas no art. 1.015 do CPC […]
Do estudo da história do direito processual brasileiro e de como a questão é tratada no direito comparado, pode-se afirmar, com segurança, que a urgência que justifica o manejo imediato de uma impugnação em face de questão incidente está fundamentalmente assentada na inutilidade do julgamento diferido se a impugnação for ofertada apenas conjuntamente ao recurso contra o mérito, ao final do processo.”
Disso extrai-se que, apenas quando a decisão recorrida possa provocar “perigo de dano iminente grave e de difícil reparação, cuja prevenção não possa aguardar o julgamento final da causa”,[3] será possível, de acordo com o precedente fixado, interpor agravo de instrumento (independentemente do conteúdo da decisão).
Neste ponto, é importante deixar claro que a decisão do STJ não repristina o modelo do CPC/73, como parte da doutrina vem defendendo. No sistema do Código revogado, as hipóteses de cabimento de agravo de instrumento levavam em consideração exclusivamente a urgência, tanto a decorrente da demora do processo, quanto aquela vinculada ao direito material. Sempre que houvesse risco, caberia o recurso por instrumento.
O precedente do STJ, entretanto, faz referência ao periculum in mora como pericolo da infruttuosità (na famosa expressão de Calamandrei), ou seja, ao perigo causado exclusivamente pela demora do processo[4]. O risco de dano abrangido pelo novo precedente – é importante que fique claro – não decorre da relação jurídica conflituosa, sequer é oriundo do direito material discutido pelas partes. O que provoca esse perigo é única e exclusivamente a decisão prolatada, conjugada com o decurso do tempo existente entre o momento da sua prolação e a sentença. Trata-se de um perigo que surge no processo e é exclusivamente com ele relacionado.
Para admitir o agravo de instrumento nesses casos, o voto condutor partiu da premissa de que o recurso sempre esteve, historicamente, em alguma medida, relacionado ao perigo na demora. O agravo de instrumento, conclui-se a partir da leitura do voto, seria – em sua essência – uma tutela urgente (não de urgência, dado que, no caso do agravo de instrumento, a decisão sobre o mérito é definitiva, sem qualquer caráter de provisoriedade).
Ocorre que, diferentemente dos seus antecessores, esta não parece ser a premissa que norteou a definição do rol previsto no art. 1.015 do CPC/15. Apesar de ter sido considerada pelo legislador, que admitiu expressamente o recurso contra decisão que verse sobre tutela provisória, a urgência deixou de ser fator preponderante para o cabimento do agravo de instrumento.
Hoje em dia, ainda que a decisão não seja crítica ou apta a provocar sérios prejuízos às partes e ao processo, ela poderá ser recorrida imediatamente, desde que seu conteúdo esteja previsto em alguma das hipóteses do rol do artigo 1.015[5]. Daí por que, parece-nos que o CPC/15 rompeu com as premissas que justificaram a formação da tese fixada, razão pela qual não poderiam ter sido utilizadas como parâmetro para fundamentar a situação excepcional.
Isto, entretanto, não significa dizer que a decisão do STJ esteja, necessariamente, equivocada.
O que temos, no caso, é uma situação de urgência que, em razão da estrutura prevista pelo legislador processual, deixou de ser adequadamente tutelada. Não foi por outro motivo que o próprio voto da Ministra Relatora (versão ainda sem revisão) referenciou a necessidade de se analisar a situação
“em conformidade com a mais contemporânea concepção do princípio da inafastabilidade da jurisdição, que, embora inicialmente concebido como o mero exercício do direito de ação, passou a incorporar também o direito à tutela jurisdicional e de efetivo acesso à justiça, de modo a “alcançar também a plena atuação das faculdades oriundas do processo e a obtenção de uma decisão aderente ao direito material, desde que utilizada a forma adequada para obtê-la”. (OLIVEIRA NETO, Olavo de; MEDEIROS NETO, Elias Marques de; OLIVEIRA, Patrícia Elias Cozzolino de. Curso de Direito processual civil: vol. 1, parte geral. 1ª ed. São Paulo: Verbatim, 2015. p. 85).”
O que se percebe é que há, evidentemente, um vácuo legislativo criado tanto pelo sistema adotado nos arts. 1.009 e 1.015, quanto pelo fato de que o CPC/15 não previu mecanismo equivalente às medidas cautelares satisfativas, comumente utilizadas na vigência do CPC/73.
Temos situações de perigo, causadas pela demora na entrega da tutela jurisdicional, que não são tuteladas pelo CPC. Há uma urgência instrumental, que nasce do processo, compromete sua efetividade e que autoriza, conforme decidido pela Corte Especial, a adoção de uma medida imediata e efetiva do respectivo órgão competente.
Ora, considerando que “não se justificam constitucionalmente quaisquer limitações impostas legal ou judicialmente à concessão de medidas de urgência”[6]–[7], nada mais justo que, ao interpretar a legislação processual de acordo com suas normas fundamentais e com o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, o julgador busque meios para garantir seja a tutela prestada efetiva. Mais do que uma possibilidade, é um dever.
Daí por que, embora legítimas as críticas até então formuladas contra o precedente fixado e seus fundamentos, pensamos que acertou o STJ ao admitir que sejam imediatamente recorridas as decisões interlocutórias cuja análise, ao tempo oportuno, impediria a concessão de tutela adequada. Não porque o recurso será inútil. O interesse recursal já foi previamente avaliado quando da definição, pelo legislador, das hipóteses de cabimento; e a opção legislativa deve ser respeitada[8]. Mas porque a Constituição autoriza a fazê-lo. A rigor, mais que isso. A Constituição determina que o faça. É o que se traduz a partir do poder-dever geral de cautela, adequadamente respeitado pelo STJ e pelo precedente vinculante[9].
A impugnação da decisão causadora do periculum in mora poderia ser realizada por meio de uma medida atípica autônoma? Poderia. Mas não haveria sentido em inovar criando um sucedâneo que, necessariamente, seguiria o procedimento previsto para o agravo de instrumento. Assim, ao afirmar estar mitigando o rol do art. 1.015, o STJ está, na realidade, concedendo tutela efetiva e adequada, a despeito do déficit legislativo. Déficit este que está mais relacionado à inadequada tutela das situações de urgência pelo CPC, do que, propriamente, às hipóteses previstas no art. 1.015.
Concordamos que “revela-se inconcebível, a partir do princípio da inafastabilidade da jurisdição, que apenas algumas poucas hipóteses taxativamente arroladas pelo legislador serão objeto de imediato enfrentamento”. Todas as situações em que for demonstrado o periculum in mora deverão e poderão ser objeto de recurso imediato.
Não há mitigação, uma vez que a taxatividade seguirá sendo respeitada. Há, em realidade, o acolhimento normativo de uma situação latente, percebida pela prática e que, até então, havia sido ignorada pelo legislador. Há tutela adequada da situação de urgência, em âmbito recursal, tal qual determina a Constituição.
* Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada.
[1] É importante ter em mente, antes de qualquer coisa, que os Recursos Especiais números 1696396/MT e 1704520/MT, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, foram julgados pelo regime dos recursos repetitivos. Isto significa dizer que a decisão que passamos a comentar é considerada um precedente vinculante, de aplicação obrigatória. Todos os tribunais deverão seguir o entendimento fixado. Mesmo aqueles que, até então, vinham inadmitindo agravos de instrumento fora das hipóteses previstas expressamente no art. 1.015 (como é o caso, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro).
[2] Agravo de instrumento contra decisão que versa sobre competência e decisão que nega eficácia a negócio processual na fase de conhecimento: uma interpretação sobre o agravo de instrumento do CPC-2015. Disponível em https://www.academia.edu/12486090/Agravo_de_instrumento_contra_decis%C3%A3o_que_versa_sobre_compet%C3%AAncia_e_decis%C3%A3o_que_nega_efic%C3%A1cia_a_neg%C3%B3cio_processual_na_fase_de_conhecimento_uma_interpreta%C3%A7%C3%A3o_sobre_o_agravo_de_instrumento_do_CPC-2015. Acesso em 06.12.2018.
[3] Ao tempo do CPC/73 e comentando suas inúmeras reformas, assim defendia Humberto Theodoro Junior: “A recorribilidade das interlocutórias por meio de instrumento deveria continuar limitada a casos expressamente previstos em lei, como os de prisão civil, levantamento de dinheiro e alienação de bens litigiosos e aqueles em que se comprovasse inequivocamente o perigo de dano iminente grave e de difícil reparação, cuja prevenção não possa aguardar o julgamento final da causa.” (O problema da recorribilidade das interlocutórias no processo civil brasileiro.” Disponível em http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Humberto%20Theodoro%20J%C3%BAnior%20-%20formatado.pdf. Acesso em 05.12.2018)
[4] CALAMANDREI, Piero. Opere giuridiche a cura di Mauro Cappelletti. Volume Nono. Napoli : Morano Editore, 1979, p. 173.
[5] Poderão ser impugnadas por agravo de instrumento as decisões que versarem sobre tutela provisória, mérito do processo, rejeição da alegação de convenção de arbitragem, incidente de desconsideração da personalidade jurídica, rejeição de requerimento ou revogação de gratuidade de justiça, exibição ou posse de documento ou coisa, exclusão de litisconsorte, rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio, admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros, efeito suspensivo em embargos à execução e redistribuição do ônus da prova. Aqui, a limitação ao cabimento do recurso é qualitativa, de tal forma que a decisão deverá estar prevista em algum dos incisos para que a parte possa utilizar o agravo de instrumento. Também são recorríveis por agravo de instrumento, as decisões previstas no parágrafo único do art. 1.015, que abrange aquelas proferidas na fase de liquidação e cumprimento de sentença, processo de execução e processo de inventário. Na hipótese, o recurso tem limitações procedimentais. Não importa a qualidade da decisão prolatada, o que viabiliza ou não seu cabimento é o momento da prolação, independentemente de ela encaixar-se no rol previsto no art. 1.015.
[6] VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. São Paulo : RT, 2005, p. 59.
[7] “A garantia constitucional da proteção à lesão dos direitos não conduz, propriamente ou necessariamente, a tais ideias. Ao contrário, leva à conclusão de que a tutela de urgência se presta a proteger o próprio direito material, ainda que de forma temporária, e mediante uma análise sumária, fundada em juízo de probabilidade (verossimilhança). Em última ratio, trata-se de aceitar a autonomia da tutela cautelar, que não deriva nem se resume a uma autonomia procedimental. Refere-se à existência de um direito à cautela como defluência dos princípios da inafastabilidade e do devido processo legal, que deve ser implementado pelo magistrado em qualquer procedimento, desde que, por óbvio, presentes os pressupostos para tanto.” (VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao poder público. São Paulo: RT, 2005, p. 64).
[8] “Veja-se que a irrecorribilidade da decisão, por expressa determinação legal, parte da premissa da inexistência do interesse recursal. Isto é, o próprio sistema compreende que a impugnação é desnecessária ou inútil e impede, desde logo, através de um critério mais simples de aferição, que a parte se valha do recurso de forma abusiva. O cabimento do recurso – ou, melhor, o seu não cabimento – é efeito da presunção legal da falta de interesse recursal, o que confirma este se tratar de um de seus elementos, da mesma forma que a impossibilidade jurídica do pedido integra o interesse de agir.” (UZEDA, Carolina. Interesse recursal. Salvador : Juspodivm, 2018, p. 178).
[9] Solução semelhante foi sugerida por Ana Beatriz Presgrave que sugeriu a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias, sempre que haja risco ao resultado útil do processo. Em suas palavras, a medida adequada seria um “pedido antecipatório antecedente recursal”. (O problema do rol taxativo do 1015: há uma solução no CPC? Pensamos que sim! Disponível em https://processualistas.jusbrasil.com.br/artigos/460956892/o-problema-do-rol-taxativo-do-1015-ha-uma-solucao-no-cpc. Acesso em 06.12.2018). Pensamos, entretanto, que não é o caso de confundir-se a tutela da urgência, como estabelecida no precedente, com tutela provisória. No caso, o que se tem é a plena satisfação do direito ao recurso e o julgamento, em definitivo, da impugnação à decisão interlocutória.