
Boa-fé processual. O art. 5º. do CPC prevê a boa-fé objetiva processual como norma de comportamento (“Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”). Isso significa que o art. 5º. não exige a boa-fé como intenção (a chamada boa-fé subjetiva), mas como comportamento ou conduta (elemento objetivo). Em outras palavras: a violação à boa-fé processual é provada pelo comportamento (elemento externo), e não pela intenção de quem se comportou daquela forma (elemento interno). Enunciado n. 374 do FPPC: “O art. 5º. prevê a boa-fé objetiva”.
Quem deve comportar-se de acordo com a boa-fé. A redação do artigo é ampla e exige a boa-fé das partes, mas também de terceiros, de advogados, de auxiliares da justiça e de quem “de qualquer forma” participa do processo. O juiz, então, também tem o dever de obedecer à boa-fé processual.
Boa-fé processual do juiz. O juiz, portanto, está incluído entre os destinatários da boa-fé. Enunciado n. 375 do FPPC: “O órgão jurisdicional também deve comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva”. Exemplo clássico: o juiz viola a boa-fé quando indefere a produção de prova e, depois, julga improcedente o pedido por falta de provas. Há “cerceamento de defesa”, como dizem os advogados, mas, antes, há a violação do dever de boa-fé. Deve-se observar, aliás, que o juiz, como órgão estatal, deve obediência ainda ao princípio constitucional da moralidade (art. 37, caput, da Constituição de 1988). O Código de Ética da Magistratura (Resolução CNJ n. 602/2008) prevê, inclusive, o dever de observância da boa-fé processual (art. 20). A esse respeito, o STJ já aplicou a boa-fé inclusive para afastar ato do próprio tribunal: “Os princípios da cooperação e da boa-fé objetiva devem ser observados pelas partes, pelos respectivos advogados e pelos julgadores. É dever do Órgão colegiado, a partir do momento em que decide adiar o julgamento de um processo, respeitar o ato de postergação, submetendo o feito aos regramentos previstos no CPC/2015. Hipótese em que há nulidade no prosseguimento do julgamento, pois, com a informação prestada aos advogados de que a apresentação daquele feito seria adiada – o que provocou a saída dos patronos do plenário da Primeira Turma -, tornou-se sem efeito a intimação para aquela assentada” (STJ, 1ª. Turma, EDcl no AgRg no REsp 1394902/MA, Rel. Ministro Gurgel de Faria, julgado em 04/10/2016, DJe 18/10/2016).
Abusos processuais pelo juiz. A doutrina ainda distingue a possibilidade de juízes cometerem “abusos processuais”, ou seja, exercício de direito com desvio de finalidade. São exemplos a utilização de modelos prontos (ctrl c + ctrl v) e o abuso de formalismos processuais (jurisprudência defensiva, por exemplo) (FARIA, Márcio. A lealdade processual na prestação jurisdicional: em busca de um modelo de juiz legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017).
Funções da boa-fé processual. Há 3 funções para a boa-fé processual: a) função de interpretação: os arts. 322, § 2º. e 489, § 3º. demonstram que a boa-fé serve de vetor de interpretação do pedido e da decisão judicial, respectivamente; b) função de controle: a boa-fé exige a observância de certos comportamentos e, ao mesmo tempo, os atos contrários à boa-fé podem ser afastados; e c) função de integração: a boa-fé deve ser obedecida também na fase pré-processual (na celebração de negócios processuais do art. 190 do CPC, por exemplo) e pós-processual. Enunciado n. 378 do FPPC: “A boa fé processual orienta a interpretação da postulação e da sentença, permite a reprimenda do abuso de direito processual e das condutas dolosas de todos os sujeitos processuais e veda seus comportamentos contraditórios”.
Cláusula geral processual de boa-fé. O CPC não poderia prever todas as situações de comportamento para impor ou proibir condutas ligadas à boa-fé objetiva no processo. Por isso, o legislador preferiu utilizar-se de uma cláusula geral processual de modo a não ser necessário um rol taxativo de condutas. Como não há uma enumeração legal de comportamentos proibidos ou impositivos em nome da boa-fé, é preciso recorrer à doutrina e à jurisprudência para encontrar casos de aplicação da boa-fé objetiva processual. Entre eles estão:
Supressio/surrectio. Surrectio é a perda de um direito que não foi exercido com o passar do tempo. Exemplo: é o caso do juiz que “espera” para decretar a ilegitimidade da parte autora após a fase de instrução e por ocasião da sentença. Da supressio nasce a surrectio (surgimento de um direito não existente antes). Alguns autores criticam a utilização da supressio no Processo Civil tendo em vista a existência do fenômeno da preclusão. No entanto, há hipóteses em que a boa-fé parece afastar matérias não sujeitas, prima facie, à preclusão. Exemplo: recurso de apelação protocolado mas “desaparecido”, cujo recorrente foi intimado várias vezes depois para dar impulso ao processo em várias fases, mas apenas fez referência ao recurso não julgado cinco anos depois (TJPR, 15ª. Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 557.362-8, julgado em 24/06/2009, Rel. Des. Juradyr Souza). Também é o caso da nulidade de algibeira.
Nulidade de algibeira ou nulidade de bolso. A “nulidade de algibeira” ou “nulidade de bolso” é expressão que vem sendo utilizada pela jurisprudência para designar a estratégia de alegação, mesmo sem prejuízo, de nulidade processual, em momento posterior e conveniente a quem alega. A expressão apareceu pela primeira vez no acórdão do REsp. 756.885 da 3a. Turma do STJ em 14/08/2007. Nesse recurso especial, a demandada alegava, na fase de liquidação, que deveria ser declarado nulo todo o módulo de conhecimento, porque as intimações da ré teriam sido realizadas em nome do estagiário, e não dos advogados, razão pela qual a demandada teria perdido a chance de se manifestar sobre o laudo pericial juntado aos autos. O STJ percebeu, porém, que, apesar do vício processual, a ré atendeu a todas as intimações realizadas em nome de seu estagiário, com exceção da única vez em que as partes foram chamadas para se manifestar sobre o laudo pericial. Segundo a 3a. Turma do STJ, a ré utilizou-se do vício processual como uma “nulidade de algibeira”, ou seja, uma nulidade que “cabia no bolso” para ser utilizada segundo sua conveniência. Entendeu-se que a alegação de nulidade não poderia ser utilizada apenas quando interessasse à parte prejudicada, especialmente depois da formação da coisa julgada e em fase de liquidação. Outro exemplo mais recente da jurisprudência do STJ: “O recorrente, autor de ação de exoneração parcial de alimentos, alega nulidade decorrente de vício de representação processual pelo implemento da maioridade civil de sua filha, ocorrida após já publicado o acórdão de apelação, contra o qual apenas ele, autor, se voltou com impugnações das quais saiu vencido. Não há nulidade sem efetivo prejuízo, devendo-se acrescentar que o recorrente tinha plenas condições de apontar o fato a que imputa causar nulidade desde seu implemento, valendo-se agora da alegação na tentativa de protelar a solução definitiva da demanda da qual saiu vencido” (STJ, 4ª. Turma, AgInt nos EDcl no AREsp 506.013/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 06/02/2018, DJe 09/02/2018). Mais recentemente, o STJ reconheceu “nulidade de algibeira” em casos como alegações tardias de nulidade por: a) falta de intimação para réplica, invocada apenas em fase recursal (STJ, EDcl na SEC 12236); b) falta de intervenção do Ministério Público, suscitada apenas após sentença desfavorável (STJ, REsp 1714163); c) irregularidade na citação durante a fase de conhecimento, mas invocada apenas na fase de cumprimento de sentença (STJ, AgInt no AREsp 1410289).
Proibição de venire contra factum proprium. É a proibição do exercício de um direito em razão de seu comportamento contraditório anterior. Trata-se de vedação de proibição de comportamento processual contraditório. Fundamenta-se na proteção da confiança a partir do comportamento dos que participam do processo. Exemplo: o autor não pode, em primeiro grau, acolher e elogiar o laudo pericial do perito do juízo e, depois, após sentença desfavorável, impugnar o mesmo laudo. Ou ainda: quando o juiz homologa suspensão do processo, convencionada entre as partes, e, durante o prazo de suspensão, resolve sentenciar a demanda (STJ, 2ª. Turma, REsp 1.306.463, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 04/09/2012, DJe 11/09/2012). Outro exemplo: “A parte que escolhe o foro da propositura da ação e que recorre da decisão que declinou da competência de ofício não pode, posteriormente, pugnar pela modificação da competência territorial por ela própria fixada e defendida, em virtude da proibição de comportamento contraditório e do princípio do non venire contra factum proprium” (STJ, 3ª. Turma, REsp 1619289/MT, Rel. Ministra Nancy Andrighi julgado em 07/11/2017, DJe 13/11/2017).
Duty to mitigate the loss. Trata-se do dever imposto ao credor de “mitigar” suas perdas e o seu prejuízo. É o exemplo do credor de uma obrigação de fazer com cominação de multa judicial (astreinte) que deixa aumentar o valor da multa exorbitantemente com o transcurso do tempo sem tomar as providências cabíveis para o cumprimento da obrigação (DIDIER JR., Fredie. Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio: duty to mitigate the loss no processo civil.). Em caso decidido pelo STJ, adotou-se o duty to mitigate the loss em caso de Procurador do Estado que propôs ação de danos morais contra servidor que expediu certidão de sentença que mencionou que o Estado foi condenado por litigância de má-fé. Ocorre que tal condenação não constou da sentença, mas o Procurador do Estado não mencionou tal fato nem nos embargos de declaração opostos pelo Estado nem na apelação interposta. Assim, o STJ entendeu que o Procurador do Estado não atentou ao duty to mitigate the loss (STJ, 4ª. Turma, REsp 1325862/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 05/09/2013, DJe 10/12/2013).
- Para saber mais: CÂMARA, Alexandre. Boa-fé no processo civil; DIDIER JR., Fredie. Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio: duty to mitigate the loss no processo civil; FARIA, Márcio. A lealdade processual na prestação jurisdicional: em busca de um modelo de juiz legal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017; QUEIROZ, Welder. A proibição do comportamento processual contraditório.
Editado por Vitor Fonsêca @vitormfonseca